Há motivos para o Butão sorrir


A seleção do Butão virou o grande saco de pancadas das eliminatórias asiáticas. Por aqui, no Brasil, virou piada. Sete jogos, sete derrotas, 48 gols sofridos, uma média de quase sete exatos por partida. Mas tente não ver apenas pelo lado engraçado. Esta seleção obteve vitórias para chegar à segunda fase da campanha para a Rússia 2018. É preciso destacar o trabalho feito para o desenvolvimento do esporte neste minúsculo país do sul da Ásia, “perdido” entre as montanhas do Himalaia.

Se falarmos em futebol por lá, provavelmente vamos lembrar a “outra final”, de 2002, um evento que reuniu as duas últimas seleções do ranking da FIFA para disputarem um amistoso no mesmo dia da decisão entre Brasil e Alemanha. Butão não fez feio: goleou Montserrat por 4 a 0 em Thimphu, sua capital.

Estádio em Thimphu esteve sempre cheio nas eliminatórias
Em 13 anos, às vistas do mundo todo, pouca coisa mudou no futebol do país de 742 mil habitantes. Tanto que 2015 começou com o Butão no último lugar do famigerado ranking da FIFA. Sua seleção jamais havia participado de uma eliminatória para o Mundial por falta de fundos, e não havia dinheiro para disputar jogos internacionais a fim de ganhar experiência. Mas aí começa o diferencial: o pouco dinheiro existente foi gasto construindo campos para que mais crianças praticassem o esporte, em um programa voltando exclusivamente aos jovens.

Com suporte financeiro da FIFA, o Butão resolveu estrear em eliminatórias a menos de dois meses do começo da disputa. O adversário na fase prévia era o Sri Lanka e, para se ter uma ideia, nem os cingaleses respeitavam os butaneses. Em Colombo, para o jogo de ida, os jornais chamavam atenção para as declarações de um ex-capitão do time cingalês, que dizia “não valer a pena para o Sri Lanka jogar contra o pior time do mundo. O Sri Lanka não vai ganhar nada com isso, nem ritmo de jogo”. Declarações que serviram de motivação: “Só porque estávamos em último no ranking não significava que não podíamos jogar futebol”, diz Karma Tshering, capitão do time.


Presidente da federação butanesa acredita no desenvolvimento do esporte no país
Deu certo: os butaneses venceram por 1 a 0, um triunfo espetacular e inimaginável para um estreante. Antes da atual campanha na eliminatória, Butão tinha apenas quatro vitórias em 33 partidas em toda a sua história. Mesmo tendo treinado um mês na Tailândia antes de jogar contra o Sri Lanka, ganhar fora de casa foi surpreendente. “Ninguém no Butão esperava que a gente vencesse. Sempre ouvimos que quando jogamos a única dúvida é quantos gols levaremos. Mas, na estreia, não tomamos gols e ainda ganhamos”, orgulha-se Tshering.

O estádio Changlimithang, construído nos anos 1970 mais como um templo do que um campo, lotou para o jogo de volta - cerca de 25 mil pessoas. O governo havia declarado feriado de meio-dia para funcionários públicos e estudantes, e o estádio começou a lotar mesmo quatro horas antes do início de partida. Chencho Gyeltshen foi o herói, marcando os dois gols da vitória - ele é o único profissional no elenco, atuando na segunda divisão tailandesa.
O cenário para o jogo de volta contra o Sri Lanka
Algo inimaginável até para o presidente da federação local, Ugen Tshechup. Foi um choque. Literalmente. “Fiquei pulando no pavilhão após o segundo gol e não percebi o quão alto eu era. Às vezes o futebol nos faz ser criança. Quando você o seu time marcar um gol, isso lhe dá arrepios na espinha e faz você sonhar. Mas depois a realidade diz: ‘Ok, o caminho árduo para a próxima etapa vai começar’”, relembra Tshechup.



O presidente da Federação Butanesa de Futebol desenvolveu sua paixão por futebol na Índia, onde passou parte da infância. E é bem realista quanto ao atual momento do esporte em seu país: “É claro que vencer inspira as pessoas, as encoraja a jogar. Mas então você percebe que mal tem bolas de futebol, não há um campo adequado para jogar, não há bons treinadores para lhes ensinar... É nisso que temos de focar”, relata.

Os jogadores locais dividem suas ocupações diárias com pelo menos dois treinos semanais. Caso de Tshering, de 25 anos, do Thimphu City. Ele é piloto da Druk Air, a companhia aérea nacional e, depois de uma partida pela seleção, precisa voltar ao foco de manobrar um Airbus entre as montanhas do Himalaia. “Não temos uma mentalidade muito profissional, mas, graças às vitórias contra Sri Lanka, há um grande número de pessoas que vêm assistir e nos apoiar, e estamos tentando transformar o nosso futebol em profissão”, comenta Tshering. Quando criança, o meia gostaria de ser jogador de futebol e, em segundo lugar, piloto de avião. Garante ter, de uma forma ou de outra, realizado seus sonhos.

O campeonato nacional é disputado por seis clubes, mas nenhum deles poderia garantir uma carreira de sucesso para seus jogadores. Os rendimentos variam entre 200 e mil dólares por ano. Tshering mesmo joga apenas por amor, já que não é pago para isso. O calendário é extremamente enxuto: são apenas dez rodadas para definir o campeão.

Cão em campo contra as Maldivas: alguém nas arquibancadas gritou para "colocar uma camisa laranja no cachorro"
Antes mesmo de levar 15 a 0 do Catar, a maior goleada de todas as eliminatórias para a Copa de 2018 até aqui, o presidente da federação havia alertado sobre os riscos de levar muitos gols nas partidas. “Somos azarões, vamos levar muitos gols, mas não desistam. Mantenha seu coração em campo. Se fizerem isso, estaremos muito orgulhosos de vocês e voltarão para casa como heróis” - esta foi a conversa de Tshedup com o elenco após a derrota de 6 a 0 para a China.

Curiosamente, o Butão vai encerrar sua participação nas eliminatórias com três técnicos. Chokey Nima, ex-jogador da seleção, começou a campanha vencendo o Sri Lanka. Porém, o japonês Norio Tsukitate assumiu o cargo para a fase de grupos, numa aposta de mais experiência internacional para os duros duelos que haveria pela frente. Mas não deu certo: Tsukitate entrou em conflito com jogadores e foi demitido. Veio então Pema Dorji, de apenas 30 anos, outro ex-jogador do time.

É com ele no comando que virá a despedida das eliminatórias, contra as Maldivas, fora de casa, em março - adversário que venceu por um suado 4 a 3 em Thimphu, com os três gols do Butão vindo nos cinco minutos finais do duelo (um deles acima). “Nós nunca desistimos. Pode estar dois, três ou quatro a zero. Nós sempre seguimos lutando”, destaca Tshedup. A equipe vai terminar com o pior desempenho desta fase na Ásia. O que importa? Com estádio sempre cheio e o olhos do mundo voltados para sua seleção, fica a esperança de que uma cultura esportiva comece a se desenvolver em meio à mais alta cadeia de montanhas do mundo.

Fotos: Getty Images, BBC, Screamer.deadspin
Share on Google Plus

Comente com o Facebook: